Alguns dias atrás estive no aconchegante teatro do Cine ouro para o
espetáculo “Q.Q.ISS?! As aventuras de Pendu e Cami do outro lado da lua e do
arco-íris”. É bem certo que o Grupo Sonhus Teatro Ritual já havia me convertido bem antes de abrirem as cortinas. Qualquer
simpatizante de Pink Floyd não hesitaria 1 minuto diante da chance de ouvir em
som 5.1 o The Dark side of the moon. Mais ainda quando a oportunidade está de
mãos dadas com o clássico O mágico de Oz. E é por isso que fui ao teatro, ávida por essa relação, velha conhecida do público. Mas o que ali se passou pela próxima
hora e meia eu não poderia ter antecipado.
O mesmerizante baile de humanos e bonecos que tomou conta do palco
despertou em mim no mínimo 24 tons de emoções. No coração dramático dessa narrativa
estão dois espantalhos,(referência ao Mágico de Oz) que se libertam e partem em
uma jornada de auto-descoberta e descoberta do mundo, ao som de The Dark side
of the moon. A natureza profundamente filosófica do album é assunto que há
algumas décadas povoa tanto mesas de bar quanto textos acadêmicos, partindo na
maioria das vezes, de duas correntes teóricas populares: A especulativa e a
levemente conspiratória. Uma ou outra, ou mesmo as tentativas mais acadêmicas
de interpretar o álbum, levam sempre à conclusão de que a banda criou algo de
caráter indubitavelmente universal e difícil de ser repetido. Talvez por isso
mesmo seja sempre associado ao Mágico de Oz, obra igualmente triunfante sobre a
passagem do tempo, trazendo questionamentos profundos que ainda são
absolutamente atuais. E é essa universalidade que se faz presente no espetáculo
Q.Q.ISS?!, através de cores e movimentos, do teatro do corpo, da arte circense
e da representação mímica. A sutil criação de significados acontece através de
uma apurada linguagem corporal dos atores e vai nos guiando quase que pela mão
para reflexões sobre o ser e sobre a vida.
As canções do álbum The Dark side of the moon têm sido interpretadas como
referência evidente ao ciclo da vida. Alguns estágios podem ser identificados
nas principais faixas , e alguns deles estão visivelmente representados na
jornada de Pendu e Cami. Considerando o que já foi dito sobre o assunto e
algumas percepções pessoais, pode se dizer que a faixa Breath é uma referência clara ao nascimento do ser. Time seria a passagem do tempo na
infância e juventude, o crescer. Money
seria o trabalho. Us and them uma
referência aos relacionamentos, à solidão e a diferença entre nós. E Brain Damage uma referência à loucura,
ao inconsciente, à libertação e talvez até à morte. Assim, não é sem motivo que
o espetáculo se inicia com Breath e
com uma fantástica coreografia de Pendu, seguida pela tentativa de Cami de
libertá-lo, de trazê-lo ao “nascimento”. O nascer é doloroso, envolve se
libertar fisicamente do útero materno ( no caso de Pendu, sair do tronco),
aprender a se manter em pé e posteriormente aprender a caminhar, atividades que
Pendu representa, auxiliado por Cami. O espantalho Cami é um mentor e um
provocador. Sua subversão o fez deixar sua roça e fugir para descobrir o que há
do outro lado do mundo. Assim, Cami e o
novo amigo seguem na jornada da vida. Ao som de Time e The great gig in the
sky, Pendu aprende a enfrentar seus medos (espantar os pássaros que pousam
sobre ele) e aprende ainda a compreender a dor do outro. O cachorro gigante que
se apresenta inicialmente como predador e tenta atacá-los, acaba se mostrando
apenas uma criatura ferida. Quer machucar porque está machucado, quer atacar
porque foi atacado. No entanto, quando ajudado pelos espantalhos, o
animalzinho se torna dócil, pede agrados e por fim vai embora. Depois de enfrentar as intempéries e
outras adversidades de uma jornada de fuga, os dois chegam ao que seria o outro
lado da lua, mas se surpreendem ao constatar que lá ninguém se importa com eles,
e todos parecem seguir uma dura rotina de trabalho. Ao som de Money, eles coreografam o trabalho na
linha de produção em série e as atividades solitárias em que se envolvem os
homens quando vão para casa ( T.V, computador, masturbação, etc). A vida do outro
lado da lua não é tão glamurosa quanto imaginaram, e assim se prova o velho
ditado de que a grama sempre parece mais verde do outro lado da rua. Nesse novo
espaço eles também se envolvem em conflitos de relacionamento. Encantam-se com
uma mulher (representada por uma boneca inflável) e brigam por ela, levando-a a
morte. Depois do trágico desfecho, Cami começa a mostrar sinais de que não está
mesmo seduzido pelo local e de que continuará sua jornada de procura por um
lugar melhor, mas Pendu já não está disposto a seguí-lo. Sem resultado para sua
negociação, Cami parte para o desconhecido sozinho, e Pendu está novamente
preso. O espetáculo se encerra da mesma forma como começou, com a passagem do
tempo e a imagem de um Pendu inerte. O The Dark Side of the Moon passa uma vez
e meia durante o espetáculo, e as cortinas se fecham após o final de Money.
Q.Q.ISS?!, apesar das tendências de divulgação no sentido da comédia,
mostrou-se um espetáculo plural. Tragicômico, reflexivo e entretenedor, tudo ao mesmo tempo. Salvas as devidas
proporções, o espetáculo segue o ensinamento Beckettiano e nos incomoda com
suas perguntas existenciais, faz uma crítica feroz à sociedade, ao mesmo tempo
em que nos fascina com uma narrativa inteligente e divertida.