Já há alguns anos que venho sendo visitada pelos gnomos da não-pertencença. Algo na minha constituição orgânica me impede de me identificar automaticamente como parte de grupos. Meus cinco sentidos falham na execução do comando de me convencer que a comunicação interpessoal foi completada com sucesso e fico com aquele conhecido sentimento que chamo de síndrome do alienígena. Essa condição sensorial faz com que a pessoa tenha a impressão de estar observando as interações a sua volta pelo lado de fora, e não consegue participar dessas interações sem se deslocar emocionalmente, filosoficamente e cronologicamente daquele momento, desaparecendo em uma nuvem de conjecturas sobre as pessoas ao seu lado e suas motivações, sobre o passado/futuro e sobre a legitimidade de sua presença ali e da própria experiência. Isso tudo se desenha em sua mente, enquanto o resto das pessoas na mesa se diverte como se nada particularmente cósmico estivesse acontecendo. Há entre a experiência e eu um distanciamento, quase acadêmico, uma licença para se observar as pessoas e eventos através de uma lupa. Descrever-me como personagem é uma tarefa imaginativa muito difícil, por isso minha preferência sempre foi descrever os incontáveis personagens que povoam os espaços a minha volta.
As vítimas desse sentimento de independência de seu próprio personagem têm dificuldade frequente em se enxergar como parte da cultura do grupo em que estão inseridas, sentem-se não-pertencentes. Não funcionamos bem como cativantes personagens. Somos narradores em essência. O não-pertencente radical pode inclusive ler a descrição de seu signo no zodíaco e não achar uma só característica que acredite realmente ter, pois pareceria forjado demais afirmar uma personalidade. Dinâmicas de grupo em que alguém pede que se diga um defeito e uma qualidade costumam levar não-pertencentes clássicos ao profundo desconforto. Ser é pertencer, e é intenso demais dizer que se pertence à qualidade x ou y. Assim, a alternativa comum para sair do incômodo acaba sendo inventar ou simplesmente dizer uma qualidade e um defeito comuns, que não despertem desconfiança no público. Afinal, quem não acreditaria no indivíduo que se declarasse “calmo, porém ansioso”?
O não-pertencente projeta-se na vida como narrador, não como protagonista. E é bem possível que a não-pertencença tenha raízes em uma modéstia de quem consume histórias. O leitor exigente não acharia verossímel um protagonista tão previsível quanto ele mesmo. O leitor sabe que o conflito está a espreita na esquina, e que qualquer falta de ação só pode ser sinal de que o clímax da história está por chegar. Não há final feliz sem obstáculo que o preceda, e é nesse momento de pretensa clarividência que repousa a grande angústia do não-pertencente. Ele não só acredita não fazer parte da história, como também crê poder fazer previsões e análises sobre a vida, sobre os personagens e sobre seus destinos, o que ocasionalmente leva a um momentum de doce melancolia. E essa é aquela hora em que alguém do grupo muito provavelmente se voltará para você e perguntará: "Está tudo bem com você? Você está meio quieto, não está participando da conversa." E você será sugado de volta do buraco negro de seus pensamentos, direto para o epicentro da experiência, e tentará agir com normalidade, tentará pertencer.
Pertencer é um verbo para os plurais, um verbo transitivo indireto, inversamente proporcional a natureza de alguns. O pensamento racional trouxe ao homem a sina de entender-se fora do coletivo e fez de todos nós animais solitários. Os homens de consciência tornam-se oráculos de si mesmos, e senhores de seus afetos e tragédias. E eu me pergunto: Será que pertencer é mesmo a única forma de redenção?
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